É Tudo Verdade: Beth Formaginni flagra o cineasta em ação no documentário "Coutinho.doc", que revela os bastidores de um mágico em pleno ato de ilusão e maravilhamento.Eduardo Coutinho em contraplano
Por Amir Labaki, de São Paulo
24/04/2009
O cotidiano de Coutinho está em documentário que estreia neste sábado no Canal Brasil
Documentaristas raramente se deixam revelar por documentários alheios de peito tão aberto quanto se permite Eduardo Coutinho em "Coutinho.doc - Apartamento 603", o obrigatório retrato dele assinado por Beth Formaginni cuja estreia é neste sábado, às 21h, no programa "É Tudo Verdade", no Canal Brasil.
À primeira vista, trata-se de um making of tardio de "Edifício Master", dirigido por ele em 2002 num prédio de classe média de Copacabana. Fosse apenas isso, já seria um registro único dos bastidores das filmagens de um dos principais documentários contemporâneos brasileiros. Experiente assistente e produtora de Coutinho, Beth foi muito além. Seu filme flagra pela primeira vez Eduardo Coutinho em ação.
"Edifício Master" é um dos pontos altos da fase áurea do cinema de entrevista na obra dele. Sua filmografia pode ser dividida em seis grandes períodos. O primeiro ocorre em sua estreia dentro do cinema ficcional do Cinema Novo, com o episódio "O Pacto" da trilogia "ABC do Amor" (1966) e os longas "O Homem Que Comprou o Mundo" (1968) e "Faustão" (1970).
Nos anos 70, a segunda fase destaca-se por sua brilhante conversão ao documentarismo dentro do insuperado período inicial do "Globo Repórter", quando realizou clássicos como "Seis Dias em Ouricuri" (1976) e "Teodomiro, o Imperador do Sertão" (1978).
Já o começo dos anos 80 marca seu afastamento do programa para trabalhar naquela que se tornou sua obra-prima absoluta, "Cabra Marcado para Morrer" (1984), no qual retrabalha como documentário reflexivo um projeto ficcional interrompido pela ditadura militar instaurada em 1964.
A consagração brasileira e internacional com "Cabra Marcado para Morrer" paradoxalmente iniciou um período de imensas dificuldades profissionais que se estendeu por mais de uma década. Coutinho dirigiu então sete obras, em geral realizadas em vídeo, sendo seis médias-metragens e apenas um longa cinematográfico, "O Fio da Memória" (1991).
Ainda assim, ao menos dois dos médias, "Santa Marta - Duas Semanas no Morro" (1987) e "Boca do Lixo" (1993), representam momentos seminais, não apenas pelo que retratam - o cotidiano de moradores de uma favela e o de desvalidos que sobrevivem de um lixão -, mas também pela experiência como documentarista do próprio Coutinho, ajudando a forjar o método que ele aperfeiçoaria nos filmes da fase seguinte.
Entre 1997 e 2005, com apenas uma exceção ("Peões", uma revisita aos companheiros sindicalistas de Lula), Coutinho consolidou um particularíssimo dispositivo de "cinema de entrevista" em quatro documentários: "Santo Forte" (1997), "Babilônia 2000" (1999), "Edifício Master" (2002) e "O Fim e o Princípio" (2005). Inicia-se então a sexta e atual fase de seu cinema, na qual problematiza a questão do real e do ficcional no cinema com filmes desbravadores como "Jogo de Cena" (2007) e o novíssimo "Moscou", lançado na competição brasileira do recente É Tudo Verdade.
"Coutinho.doc" nos traz, assim, o cineasta no auge de um período e à beira de uma nova ruptura. Vemos para além de seu particularíssimo método, com a definição de um cenário, a escolha de seus depoentes e o preparo para o registro de seu encontro em câmera com os entrevistados.
Coutinho permite-se aqui ser flagrado em pleno exercício cotidiano de seu ofício. Eis o debate franco com suas assistentes sobre as pré-entrevistas com potenciais personagens. Eis as inúmeras dúvidas sobre as escolhas. Eis seu desabafo sobre o medo de o projeto naufragar.
Beth conseguiu ainda mais. Sua câmera registra, pela primeira vez, o contraplano das entrevistas de Coutinho. Ei-lo perguntando, reagindo às respostas, sorrindo e seduzindo seu entrevistado.
Uma cortina assim se levanta. É como se espiássemos os bastidores da técnica de um mágico em pleno ato de ilusão e maravilhamento. Trata-se simplesmente de um dos mais valiosos documentos recentes da história do cinema brasileiro.
Você não precisa ter visto "Edifício Master" para se esbaldar com "Coutinho.doc". Conhecê-lo torna tudo mais complexo e fascinante - o filme está disponível para todos em DVD, mas não é essencial para o programa deste fim de semana. O "Coutinho.doc" de Beth Formaginni é um belo documentário em si mesmo.
Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.
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